O BONECO NELSITO

Mais uma vez precisei voltar à relojoaria do Lucho para realizar um reparo no meu velho relógio de estimação movido à corda. Daqui da minha casa de praia até o velho Bairro da Ribeira é uma viagem, mas usei o sábado de folga para dar aquele passeio que sempre anima o meu espírito, tanto em ver a parte antiga da Cidade, como pela visita ao meu velho amigo, aliás, um encontro com o inusitado, no seu estabelecimento sempre tem alguma novidade. Depois de passar por ruas antigas, ver prédios históricos e um casario fabuloso, cheguei ao meu destino. Estacionei o carro, e logo cumprimentei Lucho acomodado no seu móvel de trabalho consertando as suas preciosidades. Ele usava um monóculo e alguns instrumentos de precisão. Ao perceber minha presença, saiu do seu gabinete e veio me cumprimentar. Perguntou imediatamente o que podia fazer por mim. Eu respondi que além de consertar meu relógio de estimação, gostaria muito de adentrar ao seu universo mágico e rever seus bonecos fantásticos. Com um largo sorriso no rosto me encaminhou à sua estante de bonecos montada na parede do fundo da sua oficina. A estante era limitada por uma porta. Lá pude ver os bonecos de Lucho. Ali estavam Gapato, Gepa, o trapezista Joca Bravo, os ratinhos Plic e Ploc, a Senhora Zazá e alguns outros, inclusive, algumas novidades. Um deles usava uma calça listrada e uma camisa de linho branca. O seu rosto era afilado e o nariz apoiava um óculos escuros redondo. Na sua cabeça havia um chapéu tipo Panama. Alguns minutos depois chegou o Dr. Graco Ramalho, um médico conhecido por colecionar discos de vinil da música popular com exemplares que datavam quase um século. A nova visita era quase que uma cópia do novo boneco que se chamava Nelsito, só que usava calça e camisa de linho brancos, um chapéu tipo Panamá e óculos de grau redondo. Lucho quis saber das novidades, e o médico lhe contou que iria promover um encontro com músicos e boêmios para ouvir os seus discos preferidos, como também para uma bela seresta a ser executada por músicos espetaculares. De repente o amigo Graco começou a cantar uma canção imortalizada pelo grande cantor Nelson Gonçalves, como exemplo do que iria ser executado na sua iniciativa. Percebi naquele momento uma forte inquietação no boneco Nelsito que caiu ao chão. Graco apanhou o boneco e pediu a Lucho para levá-lo a sua festa. Lucho respondeu que o boneco foi feito para ele. Nós nos despedimos com um convite para a festa. Eu lhe disse que iria ver a possibilidade e agradeci o convite. Lucho confirmou que iria ver a sua criação cantar lindas canções. Graco levou o boneco nos braços como uma criança de colo. Tive a impressão de ver de longe o médico caminhar lado a lado com um homem de cerca de um metro e oitenta de altura. Naquela hora imaginei que aquela visão foi minha imaginação. Comentei aquele fato com Lucho que sem pensar duas vezes confirmou o que eu vi. Ele afirmou categoricamente que o boneco Nelsito estava ao lado do médico como uma pessoa de carne e osso. Sentamos nas cadeiras da entrada da relojoaria e soube que Nelsito foi uma brincadeira dos amigos boêmios do Dr. Graco. Eles encomendaram um boneco há muito tempo atrás que fosse uma cópia do amigo boêmio. Lucho aos moldes dos outros queridos bonecos criou Nelsito e este foi dado ao médico Graco. O boneco foi colocado como enfeite no quarto da casa onde havia uma coleção com dez mil discos de vinil. Nelsito absorveu toda aquela energia e se transformou num ser vivente que passava o dia inteiro cantando e não dava sossego a ninguém. Dr. Graco o trouxe para que Lucho lhe desse uma solução. Após alguns dias na relojoaria, Nelsito voltou a ser um boneco como os outros que também têm os seus arroubos de criarem vida. Lucho comentou que as saudades do boneco fizeram o seu dono vir buscá-lo. Deixei o meu relógio para o conserto e resolvi ir à festa do Dr. Graco.  No dia da festa fui apresentado a Nelsito que logo disse que já me conhecia. O início da festa começou com a execução de discos muito antigos, muito deles de 78 rpm. Um pouco depois começaram a chegar os músicos, entre eles Jacob, Gata e Betol. Os músicos foram para um pequeno palco montado para o show daquela noite. Na primeira música Nelsito tomou o vocal do cantor Gata e começou a cantar. A seresta terminou com os primeiros raios de sol e o boneco vivo apresentava uma energia sem fim. Nas primeiras horas da manhã estava em casa e fui dormir. No dia seguinte acordei com uma enorme vontade de ver Lucho e comentar sobre a noite passada, mas deixei para outro momento. Algum dia volto lá e com certeza saberei das novidades daquele cantinho cheio de acontecimentos fora do senso comum.