O ANJO DA CASA DEMOLIDA

Foi triste observar mais uma casa bonita sendo demolida. Foi de uma insensibilidade que cortou o coração. As ferramentas foram ao pouco derrubando tudo, a começar pelos muros, depois paredes, colunas romanas e sacadas decoradas com guarda corpo de ferro forjando galhos de plantas, tudo isso desabando ao chão. As janelas e portas de rara beleza se desmanchavam e se transformavam no mais bruto lixo. As imagens pintadas em algumas paredes eram destruídas ao golpe de marteletes. Uma visão de terror, digna dos mais terríveis bombardeios observados em cenas de guerra. E, eu ali só observava aquela barbárie sem poder fazer nada, a não ser lembrar a bela casa e quem lá morou. Depois de mais algum tempo chegou a hora do jardim. Assim, trabalhadores passaram a destruir fontes de água em forma de concha, arrancavam plantas pela raiz e quebravam todo o piso de cerâmica desenhada que circulava os espaços de vegetação. Perto do muro frontal havia uma estátua de um anjo com asas abertas de cerca de um metro de altura. Durante toda a minha infância na convivência com a família proprietária da casa, admirei aquela estátua e tinha certeza que ela era a protetora daquele local. Num arroubo inesperado, corri até a demolição para saber o que havia sido feito com o anjo. Fiquei profundamente abalado ao ver o anjo no chão completamente destruído. O trabalhador que fez aquilo chegou a comentar que aquela ação havia sido um erro, mas, apenas cumpria ordens. Ele explicou que a ordem era para não sobrar nada. Depois soube que a casa estava para ser tombada pelo Patrimônio Histórico devido ao seu significado, por ser a fotografia de uma época com toda a sua arquitetura clássica, esquadrias, janelas, portas, portões de ferro, etc, típicos de uma época. Com muito jeito apanhei do chão alguns pedaços do anjo sem haver qualquer reação por parte do trabalhador com quem falava. Com um carro de mão da própria demolição, levei algumas partes do anjo para casa. Realmente, não sabia o que fazer com os restos da estátua. O mais preservado foi uma asa, as pernas e o rosto. O que sobrou além disso foram pedaços que sequer poderiam ser identificados. Tinha um amigo que trabalhava na confecção de bustos e fazia remendo em peças de cerâmica e gesso, além de outros materiais. Passei-lhe a incumbência da recuperação do velho anjo. Na mesma noite sonhei com o velho anjo conhecido, dessa feita, intacto, voando pela cidade e fazendo uma ronda, ajudando pessoas, principalmente crianças a se livrarem de quedas, ajudando cegos a atravessar ruas, e ainda circulando acidentes e me pareceu levando aos céus formas luminosas indefinidas, que identifiquei, na minha imaginação, como almas. Alguns dias depois, fui à oficina do meu amigo escultor que me apresentou o anjo recuperado. A verdade é que não ficou como eu esperava, mas, agradeci o serviço e instalei o anjo no meu jardim, colocando-o numa posição em que ele olhava para minha casa. Fiquei surpreso, quando num dia qualquer começou o movimento de início da construção de um prédio de apartamentos no terreno da antiga mansão. Todo o movimento da obra como transporte de materiais e construção de fundações, causou pequenos tremores de terra, que estranhamente mudou a posição do anjo, deixando este de frente para a obra. Achei natural aquele movimento e deixei como estava. Durante a obra o anjo parecia cuidar dos serviços até o término de um prédio de quarenta andares. Toda a obra correu normalmente e não aconteceu acidentes. Os trabalhadores diziam que o anjo os protegia. No final da construção, fui procurado para que a estátua do anjo fosse instalada no hall de entrada do edifício. A princípio fiquei contrariado, mas concordei com a sua cessão, pensei que mais pessoas seriam protegidas.