GAPATO
O meu relógio de pulso parou. Um bom motivo para ir trocar a sua pilha na Relojoaria do Lucho e fazer uma visita aquela figura espetacular. O trajeto daqui da minha casa de praia até o bairro mais antigo da cidade é um pouco distante, uma pequena viagem que valerá a pena, pensei. Será muito bom rever Lucho e seu mundo particular. Chegando na Ribeira fui apreciando aqueles prédios antigos, alguns em estilo clássico e outros em estilo Art déco. As suas ruas com luminárias antigas e banquinhos nos canteiros. Admirei construções históricas como o Teatro municipal, o Velho Jornal e a Capitania dos Portos. Peguei a rua principal e entrei na rua da Relojoaria. Parei o carro e entrei naquela casa mágica. A entrada da oficina estava surpreendente. Os relógios de parede davam um encanto especial, a novidade era um relógio cuco. As prateleiras estavam repletas com os brinquedos artesanais feitos por lucho, carrinhos de madeira, aviões de madeira, soldados de lata, trapezistas de cordas, bonecos e bonecas de pano. Em cima de uma cadeira de palhinha estava o trapezista Joca Bravo a espera de alguém para movimentá-lo. Ao seu lado estava um novo boneco, certamente um favorito, o qual apanhei e levei até Lucho que estava no seu gabinete trabalhando. Dei um sonoro bom dia e tive uma resposta à altura. Como vai esse sonhador, bradou o meu amigo relojoeiro. Respondi que ali estava melhor, pois mergulhava num mundo que me agradava e me levava a dimensão do inimaginável. Com um largo sorriso, perguntou o que podia fazer por tão nobre amigo. Querendo passar mais tempo ali, disse que precisava trocar as pilhas do relógio e o vidro. A resposta foi que o serviço seria imediato. Com o novo boneco nas mãos quis conhecer a novidade. Assim, conheci Gapato, um outro brinquedo para a meninada. Certamente, Joca Bravo estava se cansando de ser o único brinquedo disponível. O novo boneco calçava um tênis e vestia um moletom azul. A sua face era rosada, usava um óculo estilo fundo de garrafa e apresentava uma calvície com cabelos a partir de trás da orelha. Dessa vez, Lucho criou um boneco que podia ser manuseado como aquele usado por ventríloquos. Peguei Gapato e fui sentar no sofá da entrada da oficina. Coloquei-lhe em cima minha perna e percebi uma abertura no meio das suas costas, tateando senti quatro comandos os quais podia apertar com os dedos para fazer movimentos no boneco. Descobri aos poucos que o primeiro comando mexia a sua boca, o segundo mexia a cabeça que fazia uma rotação para os lados, o terceiro movimentava seu braço direito e o quarto fazia que ele se levantasse um pouco, como se quisesse ir embora. Já conhecendo o seu funcionamento, quis movimentar o boneco pra valer. Quando apertei o primeiro comando ouvi do boneco a frase: eu sou Gapato, apertei novamente e escutei: qual o seu nome. Respondi e continuei a conversa, soube que ele era engenheiro e que trabalhava num grande centro do país, tinha ideias de construir fábricas de equipamentos eletrônicos, estradas suspensas, pontes, etc, havia feito doutorado na França e tinha trabalhado em muitos países. Que boneco sabido, pensei alto. Apertei o segundo botão e ele olhou para o meu rosto. Apertei o terceiro botão e ele mexeu o braço direto. Quando apertei o quarto botão ele deu um salto e caiu em pé na minha frente. Num piscar de olhos Gapato havia se transformado numa pessoa. Fiquei surpreso com aquilo, mas entendi que estava na Relojoaria, um lugar fora dos padrões normais. Ele se despediu e disse que precisava terminar o seu novo projeto de um forno para elaborar porcelana. Antes de ir embora, passou pelo gabinete e se despediu do seu criador. Pouco tempo depois, Lucho terminou o serviço e pude comentar sobre o boneco Gapato. Aquele boneco foi uma homenagem ao amigo engenheiro Volpato e lhe foi dado de presente. O boneco ficou sob a sua posse até o seu falecimento, quando foi devolvido pela família, já que ele era uma cópia miniatura do engenheiro Volpato. O boneco ficava na biblioteca e se misturava com livros e projetos de engenharia, e, ainda estava presente nas discussões técnicas entre renomados engenheiros. O nome Gapato foi dado por seu primeiro dono. Quando voltou, Lucho entendeu que a sua criação não era comum, e, o colocou na sua galeria de bonecos especiais, ele jamais poderia ser vendido. Continuou relatando que de vez em quando Gapato saia e voltava depois de aprontar alguma pelo mundo. O boneco engenheiro era muito arteiro, tinha uma eloquência fenomenal, e, a partir daí, arrumava muitos problemas. Agradeci pelo serviço e me despedi do meu relojoeiro favorito. A sua oficina de relógios era um local fantástico, fora de qualquer eixo de realidade. Numa volta a relojoaria, dessa vez, apenas para conversar com velhos amigos, deparei com o boneco Gapato. Apanhei-o e o coloquei sobre minha perna. Apertei o comando da boca e o que virava sua cabeça e escutei uma proposta de construirmos uma ponte sobre o Rio Grande, seria um negócio da China. Era melhor parar por ali. Devolvi o boneco ao seu lugar e entendi que ele era um criador de confusões. De uma outra vez, percebi que a abertura para os comandos de Gapato estava fechada com um tampo de couro. Imaginei que Lucho quis dar um tempo as peripécias e ideias mirabolantes da sua criação.