DOM QUIXOTE E O CATAVENTO

Um quadro do genial artista Marinho, exposto na Galeria de Arte do Gaspar, apresentava a figura de um Dom Quixote com uma enorme lança apontando para um catavento assentado sobre um barreiro de água, e, ao seu lado estava o seu conhecido companheiro Sancho Pança, tendo como fundo a paisagem de uma vegetação rasteira do sertão. Era uma beleza de quadro de uns cinquenta por oitenta centímetros, emoldurado com uma madeira acobreada, conferindo uma elegância especial àquela peça. Quem estava na galeria naquele dia era o velho amigo Dodô Ventura, famoso por suas estórias mirabolantes e exageradas. Perguntei como ele estava. Soube que ele andava pelo interior do estado trabalhando numa empresa construtora de estradas, podendo, assim, conhecer todos os recantos da nossa sofrida e encantadora terra, como ressaltou. Comentei a respeito da beleza e singularidade do quadro retratando Dom Quixote e sua luta contra o catavento. O meu interlocutor revelou que aquele quadro foi feito a partir de uma cena idealizada pelo pintor, sendo ele o modelo que representou Dom Quixote. Uma enorme curiosidade surgiu e eu não tive como evitar a pergunta: como tudo aconteceu? Aquela estória seria de arrepiar, mais uma lorota espetacular, pensei. Dodô começou a contar o encontro que teve com Marinho na sua cidade natal chamada de Passagem. Foi um agradável encontro que se deu no Restaurante Pamplona, de propriedade de um espanhol chamado Pepe Alvarez, que adotou aquela cidade como sua há muito tempo atrás. Seu tipo físico era de um homem baixinho, gorducho, cabelos pretos lisos e uma cor rosada no seu rosto redondo. Continuou a descrever o encontro, contando que enquanto eles estavam almoçando, o anfitrião se sentou à mesa e começou a puxar assunto. Destacou a enorme semelhança da Cidade de Passagem com a paisagem de algumas cidades da Espanha, inclusive, lembrou os cataventos, que eram pequenos moinhos de vento abundantes na sua região, também, do solo pedregoso e do clima quente. Ele confessou que ali se sentia em casa. Dodô aproveitou a oportunidade e relatou suas viagens pelo mundo incluindo a Espanha, terra de sua predileção. Lembrou as touradas que teve a satisfação de assistir, e, a festa de San Fermín na Cidade de Pamplona, onde touros correram soltos por quase um quilômetro nas ruas estreitas do seu centro histórico. As ruas estavam abarrotadas de corredores vestidos com a tradicional roupa branca e panos vermelhos ao redor do pescoço. No desenrolar da conversa, Pepe ficou deveras admirado quando Dodô contou que derrubou um touro torcendo os seus chifres. Na conversa, Marinho falou sobre a sua admiração pela obra prima da literatura mundial Dom Quixote de la Mancha, e da sua enorme vontade de pintar algo sobre aquela temática. Pepe, com um sorriso no rosto, disse que Dodô daria um ótimo Dom Quixote, enquanto ele seria o Sancho Pança. Marinho, aproveitou aquela chance para a elaboração de uma nova pintura, convidando aos presentes para serem modelos, cujo tema seria: Dom Quixote e o catavento. Pepe se caracterizaria como Sancho Pança e Dodô seria Dom Quixote. Naquela tarde as personagens foram montadas e eles se dirigiram na camionete de Dodô a um sítio onde havia um catavento assentado sobre uma pequena barragem. Marinho dirigiu a cena colocando os modelos nos locais apropriados. Dodô segurava uma lança de verdade apontando para o catavento enquanto o amigo ficava parado ao seu lado. Marinho armou o cavalete e as tintas na varanda da casa do sitio, num local elevado a uns cinquenta metros dos amigos, e ficou lá pintando. Após cerca de uma hora, o trabalho inicial havia terminado. Na tela havia um esboço da pintura a ser terminada depois. Marinho, da varanda avisou que o trabalho havia sido encerrado. Na volta para a casa, os moradores de Passagem viram os dois fantasiados, o que rendeu muitas risadas e comentários. Aquela brincadeira foi bastante divertida e rendeu um belíssimo quadro e uma estória a ser contada por Dodô, sendo mais uma a ser incluída no seu repertório de causos e episódios espetaculares. Dodô encerrou o nosso encontro dizendo que foi convidado por outros artistas para posar como Dom Quixote, devido a sua semelhança revelada naquela pintura. Outro dia me encontrei com o artista Marinho e lhe contei sobre o encontro que tive com Dodô Ventura e a curiosa estória da pintura do quadro: Dom Quixote e o catavento. Este deu um sorriso enigmático sem confirmar nem desmentir aquela estória. Depois, comentou que Pepe faz visitas aos cataventos da região fantasiado de Sancho Pança, juntando gente para ver aquela façanha. O curioso é que nesses passeios, ele foi visto acompanhado de uma figura semelhante ao conhecido Dom Quixote, só que por poucos instantes. Entretanto, é sabido que ele sempre volta sozinho. Deve ser a imaginação das pessoas que conhecem a sua origem e a sua admiração por Dom Quixote, algum amigo fantasiado, ou outro fenômeno fora da racionalidade habitual. Sinceramente, fiquei com muita vontade de visitar Passagem e suas personagens. Qualquer dia, vou até lá.